Razao

ESTE BLOGUE COMBATE TUDO O QUE POSSA POR EM CAUSA A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A SUA LIBERDADE. É, POR ISSO, ANTICAPITALISTA E ANTICOMUNISTA.

22/11/09

Sobre o Povoamento Humano dos Vales de Loriga e Alvôco e sua Evolução

A Ribeira de Alvôco atravessando a aldeia de Vide, vendo-se ao fundo a ponte medieval 

O povoamento de Vide e dos lugares circundantes teve um percurso por fases. A primeira, pelos almocreves caminheiros, teve uma fraca implementação demográfica. A segunda deve-se à invasão dos rebanhos durante a transumância e foi a mais relevante para o seu povoamento.

A revolução da água foi uma fase impulsionadora da fixação humana, devido ao aparecimento do milho, transportado pelas caravelas dos descobrimentos da América do Sul, especificamente do México. As sangrias da água nas encostas das ribeiras, as poças que regavam as leiras, as levadas, as veias de água, fizeram pulsar a paisagem, humanizando-a.

O açude dos caneiros na Ribeira de Alvôco, vendo-se a levada, em cima à esquerda, que levava a água para o moinho hidráulico do Salgueiral, infelizmente quase destruído (é incrível a falta de sensibilidade para a preservação deste património)

                                                                        Um moínho hidráulico abandonado

Os moinhos para farinar o milho, tocados pelas águas das levadas, desviadas dos açudes, substituíram os moinhos rupestres do Neolítico, onde eram esmagados, numa concavidade, de uma pedra ou rocha, glandes, castanhas e outros frutos secos. Encontra-se ainda um destes moinhos na Quinta do Espinheiro, próximo de Vasco Esteves.

Elementos estatísticos dão-nos a conhecer alguns elementos demográficos, no século XVI. Assim, em 1517, Loriga tinha 78 moradores, Alvoco da Serra, 46 e Vide, 9.

Na verdade, foi a transumância a causa dos povoamentos e consequentes desenvolvimentos rurais, devido à importância da lã, como a maior riqueza em toda a Europa. Consequência da revolução da industria têxtil, que irradiou da Inglaterra com a sua Revolução Industrial no século XVIII.

De referir que a lã, como o mais elevado valor económico, provocou graves impactos sociais na Inglaterra. Os agricultores, cuja sobrevivência estava na terra cultivada, foram arrendatários expulsos dos terrenos dos grandes senhores e latifundiários, que foram totalmente vedados, conhecidos por cercados ou “enclosure”, para os encher de rebanhos.

Esta situação de fome e de miséria levou os agricultores a revoltas sociais, com graves consequências, e, a estas, juntou-se a ameaça à sua afectividade e religiosidade: “os mortos só podem ser embrulhados em tecidos de lã”. Aos gritos de revolta dos agricultores: “Adão não deixou testamento, portanto a terra é para todos os seus filhos, que são todos os homens”. Thomas Moore, humanista e estadista irlandês, escreveu: ”os carneiros são devoradores de homens”.

Ao contrário destes acontecimentos provocados pela lã, os rebanhos da transumância foram os factores primordiais para os povoamentos nas encostas e vales, nas ribeiras de Alvoco, Loriga e Piódão.

Precisamente da Covilhã, que em 1861 já possuía oficinas de lã protegidas pelo 3º Conde de Ericeira, partiram pólos ou eixos da industria têxtil, Tortozendo, Unhais da Serra, Alvoco da Serra, Seia, Loriga e S. Romão.

Os rebanhos vindos da Terra Chã, das várzeas e lameiros, ribeirinhas do Mondego, Dão e Alva, juntavam-se na Vide e daqui partiam por dois caminhos ou canadas. Uma, pela Geia e Portela de Arão, outra, ao longo das margens das ribeiras de Loriga e Alvoco, para as pastagens da Estrela e Avoaça, desde o mês de Julho até ao S. Miguel, a 29 de Setembro.

No S. Miguel, os rebanhos regressavam e juntavam-se na Vide, nos locais do Aziral, Alagoa e Bardinhos. Nestes locais, fazia-se o ritual da aparta, isto é, a separação dos rebanhos, pelos respectivos donos. Terminada a aparta procedia-se ao pagamento das jornas aos pastores. Voltando ao povoamento de Vide, este deve-se à exigência e à obrigatoriedade do pagamento do imposto de 50 reis, por cada cabeça do rebanho, à Junta Paroquial de Loriga. Esta paróquia era a guardiã que abria as portas para entrada dos rebanhos para as pastagens na Serra da Estrela.

Aconteceu, porém, que a exigência deste pagamento, e por ser considerado um elevado custo, levou os donos dos rebanhos a abandonarem as pastagens na Serra da Estrela.

Esta recusa teve, também, como causa, as condições pastorícias propícias nas encostas e altos das ribeiras, com abundância das ervas secas estivais, a alimentação ideal dos rebanhos, dentro do triângulo geo-pastorício, Avoaça, Açor e Vide, beneficiada com os montes de Balocas e Gondufo.

Deste modo, os rebanhos pernoitavam em Vide, nos referidos locais, Aziral, Alagoa e Bardinhos. Nestas condições, muitos donos dos rebanhos e pastores fixaram-se nestes locais, porque a lã, nesses tempos, tinha um valor económico elevado. Aqui se juntavam os tosquiadores, considerados os melhores das regiões serranas, e a lã era negociada para as indústrias têxteis dos já referidos eixos ou pólos da Covilhã a Seia. De tal modo era a importância da lã, que o povo dizia: “Se todos os filhos de Adão pecaram, todos os da Covilhã cardaram”. E até Gil Vicente escreveu: “Muitos panos finos, que se fazem lã”.

A transumância foi, portanto, a principal causa do povoamento de Vide.

No livro “Estudo de Geografia humana nos vales das ribeiras de Loriga e Alvoco”, as suas autoras, Carminda Cavaco e Isabel Marques, dão-nos um trabalho bem documentado e muito relevante para o conhecimento destas regiões humanizadas.

No meu estudo, como geógrafo, sobre estes vales, especificamente o da ribeira de Alvoco, o trabalho circunscreveu-se ao conhecimento dos seus vestígios glaciares, conhecido como vale aborregado, devido aos rebolos, brancos e polidos pela erosão glaciar.

                                     Vista da aldeia da Ribeira. Ao fundo vê-se a estrada das Pedras Lavradas.

No mesmo estudo, a referência à epopeia dos agricultores dos vales dessas ribeiras que, com o mais duro trabalho, cortaram e romperam as fragas de xisto, para desviar os leitos das ribeiras.

Este desvio deu-lhes lameiros e várzeas férteis. Estes engenheiros do xisto engrandeceram o memorial do passado, deste mundo rural, dando beleza humana a toda a paisagem da Beira Serra.

Queda de água do poço da Broca na Ribeira de Alvôco, Barriosa. O melhor exemplo de desvio do leito do rio para o cultivo das terras.

O excelente restaurante Guarda Rios no poço da Broca, na Barriosa, muito bem enquadrado na paisagem ribeirinha (durante anos a fio esteve ali uma obra embargada). Deve-se ao empreendedorismo do meu primo Zé Pedro, cujo pai, o Sr. Borges era guarda-rios de profissão.

Sem comentários: